sexta-feira, 12 de junho de 2009

O mistério da linguagem

Eis algumas considerações de Marilena Chaui sobre a linguagem criadora, aquela que retira a palavra de seu lugar corriqueiro, como fez Van Gogh com os sapatos dos camponeses.
...que linguagem é esta cuja força existe somente quando não se reduz a ser mera designação de coisas nem mera cópia de pensamentos? Não é a linguagem empírica e costumeira de nossa vida cotidiana, já instituída em nossa cultura. É a linguagem criadora, operante, instituinte. É a linguagem do escritor quando este imprime uma torção na linguagem existente, obriga-a a uma "deformação coerente", rouba-lhe o equilíbrio para fazê-la significar e dizer o novo. "Como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: só tem a ver com a linguagem e é assim que, subitamente, encontra-se rodeado de sentido". O mistério da linguagem está em que só exprime quando se faz esquecer e só se deixa esquecer quando consegue exprimir. Quando sou cativada por um livro, não vejo letras sobre uma página, não olho sinais, mas participo de uma aventura que é pura significação e, no entanto, ele não poderia oferecer-se a mim senão como linguagem. Um livro, escreve Merleau-Ponty, é "uma máquina infernal de produzir significações".

Preguiçosamente, começo a ler um livro. Contribuo com alguns pensamentos, julgo entender o que está escrito porque conheço a língua e as coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experiências ali relatadas. Escritor e leitor possuem o mesmo repertório disponível de palavras, coisas, fatos, experiências, depositados pela cultura instituída e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porém, algumas palavras me "pegam". Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sentido comum e costumeiro e elas me arrastam, como num turbilhão, para um sentido novo, que alcanço apenas graças a elas. O escritor me invade, passo a pensar de dentro dele e não apenas com ele, ele se pensa em mim ao falar em mim com palavras cujo sentido ele fez mudar; arrasta-me do instituído ao instituinte. Neste momento, uma aquisição foi feita, e o livro, doravante, pertence às significações disponíveis da cultura. Se eu também for escritora, uma tradição foi instituída e eu a recolherei para, ao retomá-la, reabrir a linguagem numa nova instituição.

Como a pintura, a literatura é retomada de uma tradição mais antiga do que ela, a do mundo perceptivo, e é abertura de uma nova tradição, a da obra como cultura. Assim como o pintor tateia entre linhas e cores para fazer surgir no visível um novo visível, assim também o escritor tateia entre sons e sinais para fazer surgir na linguagem uma nova linguagem. Essas operações instituem o mundo cultural como mundo histórico no qual o momento instituinte se enraíza no instituído, abrindo uma nova instituição, que se tornará, a seguir, instituída e uma tradição disponível para todos.
(Excerto de artigo Marilena Chaui intitulado Merleau-Ponty: a obra fecunda, Revista Cult 123, abril 2008, pp. 51 e 52)

4 comentários:

  1. Salve salve, Deise! Bem vinda a essa nossa humilde sapataria!
    O que mais gostei no texto da Chauí foi esse olhar desmistificado sobre a atividade literária! Acho que nós, escrivinhadores, quando falamos da nossa atividade, exageramos no tom, idealizamos. Assim, o olhar da Filosofia sempre será importante para que os artistas andem com os pés no chão...

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  2. Penso que poesia e filosofia são frutos da mesma árvores, uma não vive sem a outra.

    A Cecília Camargo diz que todos tem o desejo e o direito de manifestar-se, os artistas de alguma forma, por desejo, vontade e treino, se manifestam melhor que os outros.

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  3. Quando vejo uma pintura rupestre que eles chamam de arte, percebo o que é arte: Arte é a insignificância levado ao extremo, aonde perdemos a percepção sensorial do cotidiano. Estamos pintando o mundo novamente e não é de azul... Ao ler o texto da querida Deise (quanta preocupação com as vírgulas. Ponto e vírgula nem pensar! TRAUMA), percebo que hj queremos embelezar demais o mundo, quando o real artista só deve vivê-lo.
    Vejo tanta coisa incluída nas mais diversas obras que me sinto um esquizofrênico literário e pior, não sei se é doença ou se mesmo, terá cura. Desta dúvida é que devo morrer?
    'Tô' lascado!
    Bjs e seja muito bem vinda, Deise "Anunciapção".
    Vou, revisar, as, vírgulas, novamente, antes, de, enviar;

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