segunda-feira, 1 de junho de 2009

Heidegger, Martin. A Origem da Obra de Arte. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70. Lisboa, 1977, pp. 14-30.

Van Gogh




"Escolhemos como exemplo um apetrecho conhecido: um par de sapatos de camponês. Para a sua descrição, não é preciso ter à frente autênticas peças deste tipo de apetrechos de uso. Toda a gente os conhece. Mas como se trata de uma descrição direta, talvez seja bom facilitar a presentificação intuitiva (Veranschaulichung). Para fornecer esta ajuda, basta uma representação pictórica. Para tanto escolhemos uma conhecida pintura de Van Gogh, que pintou várias vezes calçado deste gênero. Mas o que é que há aí de especial para ver? Toda a gente sabe o que faz parte de um sapato. Se não são socos ou chanatos, há uma sola de couro e o cabedal que cobre, ajustados um ao outro por costuras e pregos. Um apetrecho deste tipo serve para calçar os pés. Consoante a serventia, se para o trabalho no campo, ou para dançar, assim diferem matéria e forma.

Estas indicações adequadas apenas explicam o que já sabemos. O ser-apetrecho do apetrecho repousa na sua serventia. Mas o que se passa com esta? Apreendemos já porventura o caráter instrumental do apetrecho? Para o conseguirmos, não temos de procurar o apetrecho que tem serventia no seu serviço? A camponesa no campo traz os sapatos. Só aqui eles são o que são. E tanto mais autenticamente o são, quanto a camponesa durante a lida pensa neles, ou olha para eles ou até mesmo os sente. Ela está de pé e anda com eles. Eis como os sapatos servem realmente. Neste processo de uso do apetrecho, o caráter instrumental de apetrecho deve realmente vir ao nosso encontro.

Enquanto, pelo contrário, tivermos presente um par de sapatos apenas em geral, ou olharmos no quadro os sapatos vazios e não usados que estão meramente aí, jamais apreenderemos o que é, na verdade, o caráter instrumental do apetrecho. A partir da pintura de Van Gogh não podemos sequer estabelecer onde se encontram estes sapatos. Em tomo deste par de sapatos de camponês, não há nada em que se integrem, a que possam pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia...

Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É a partir desta abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo."

2 comentários:

  1. Sacanagem colocar o Heidegger pra gente comentar!!! Esse texto é incrível, e além das coisas todas que diz sobre a natureza da arte, mostra também como é difícil racionalizar sobre aquilo que tão naturalmente se sente com a experiência artística. Dessa forma eu até entendo o que o Chris quer dizer com: " a poesia (...) é o mais alto nível que a razão chegou. Na poesia a razão não explica o sentimento, mas demonstra-o" Eu só expandiria isso para ARTE e acrescentaria ao "SENTIMENTO" as "COISAS" mas isso é tudo debate de termos.

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  2. O Heidegger é fresquinho por que é gostoso ou é gostoso por tá fresquinho?
    O mais claro clamor do edson nesta exp~edição ao Heidegger é a demosntração que a vida está para além da vida e chamaremos isto, por convenção: ARTE!
    ARTE RETA TARE TERA
    ChriIs

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