quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cora Coralina > Sapato velho

Não há nada que dure mais do que um sapato velho
Jogado fora.
Fica sempre carcomido.
Ressecado, embodocado,
Saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol,
Que de esforço, constante, invisível,
Material, atuante,
Silencioso, dia e noite,
Precisará um calçado, no lixo,
Para se decompor absolutamente,
Se desintegrar quimicamente
Em transformações de humo criador?

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.  São Paulo: Círculo do Livro, p. 67.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Ziquizira ( ou Professor.)



Edson Bueno de Camargo

Cair da tarde, o Sol se recolhe em uma sinfonia de tons pasteis de laranja de lilases.

Num boteco qualquer ao fim da tarde, em algum lugar do Brasil, entre o centro portentoso de uma capital ou subúrbio, suas casinhas em reboque dependuradas num morro. Uma grande cidade onde todos trabalham duro, em suas fábricas fumarentas e barulhentas. Homens que não dispensam tomar umas e umas no cair da tarde. É nestes espaços modernos do sagrado, onde a velha e antiga sabedoria dos gregos se manifesta, a grandiloquência da “filosofia de botequim”, embora apregoada a sua extinção; ela perdura.

_ Ziquizira isto sim,

_ Qualé Professor, ta falando sozinho é? Pergunta Duda um funcionário de banco ao amigo de copo.

_ Ziquizira, quizumba, macumba, mau-olhado, tudo junto e mais alguma coisa. A educação das crianças no Brasil tem tanta desgraça que parece coisa feita. Sabe tipo, começou errado, e f... tudo no final.

Duda toma um gole de cerveja gelada, fita o amigo tentando entender, e em dúvida se pergunta ou não o que afligia o amigo já visivelmente alterado pelo álcool. O Professor sempre tinha boas histórias. Perguntou.

- Professor tu é um cara legal, mas de vez em sempre vem com uns assunto osso. Tem história que ficou até arrepiado. Tenho até medo de perguntar qualé a bronca; mais manda ai.

- Como estava falando amigo Duda, a educação infantil no Brasil parece que tem uma Quizila de Santo Brabo. Destas que a gente pega quando pisa em macumba e toma a cachaça do Santo. Pra começar do começo mesmo: tava todo mundo em paz e sossegado, coçando o saco e catando piolho e vieram os portugueses, encheram um navio com um monte de padre da tal Companhia de Jesus, que mal desembarcaram na praia foram rezando a primeira missa e catequizando os índios. Não perguntaram na da ninguém, foram se abancando, fundando colégio e tal. Trouxeram até a última moda em pedagogia na Europa católica, e tal de Ratio Studiorum, - Duda você não imagina, o negócio mostra até como se monta uma sala de aula, igualzinho as salas de hoje em dia. professor na frente, e os alunos todos perfiladinhos só ouvindo.

_ Mas colégio de padre tem até hoje, tem não.

_ Tem mas é diferente. Acontece meu caro amigo, que naqueles dias só tinha colégio de padre, e só um tipo de padre que tinha um acordo com o Rei da época, que é que nem presidente, mas ninguém vota; uns tais de Jesuítas, e não tinha mais nada. A coisa erra precária na estrutura, mas tinha bons professores, ensinavam latim e tupi para a moçada, isto é, para os índios na forçação de barra de torná-los todos católicos e os filhos a patrãozada. Negro não passava nem na porta, escravo era educado na ponta da chibata. É couro no couro. Tava indo até que bem, até que aconteceu a segunda desgraça.

Para, dá uma respirada, mata o último gole de cerveja, fazendo uma meia careta, pois o líquido já estava quente.

_ Õ Alemão, bota mais uma na mesa, trás uma pinga, e frita umas linguicinhas ai. Daquela bem aceboladas mesmo patrão.

O Alemão, dono do boteco, descente de bantos trazidos a força do continente africano, pensou la no fundo “Ainda dó umas bifas neste chato” e vira com um sorriso amarrotado.

_ Ta saindo.

_ Cara tu e tuas paradas técnicas. Mas já que parou memo. Dá um tempo aé que vou dá uma mijada e já volto, não começa a história ainda meu. Que história é esta de segunda c... nacional.

Voltando o Duda com a cara de aliviado e já ajuntando mais alguns membros da fauna local, o Joca militante do Psol, o Aristeu motorista de táxi, O Tonho da loja em frente que havia acabado de fechar e uns caras que ninguém conhecia, o Professor começa todo empolgado, terminando de beiçar a pinga.

_ Aí os Jesuítas que foram os donos do pedaço por mais de duzentos anos, tiveram uma treta com o Rei de Portugal, e o seu ministro o Marques de Pombal. Que da noite para o dia expulsa os padre tudo, e fecha todos os colégios, É lógica da ponta do fuzil. Cai fora ou nóis manda bala. Teve uns que tentaram bancar a parada, mas no fim quem tem mais arma tem mais razão.

_ É isso aí, tem que mandar embora mesmo, padre e tudo FDP, zoaram com a vida dos índios, tem mais é que se f... Interfere o Joca todo empolgado. Já ameaçando cantar o hino da Internacional Socialista. _ impuseram o catolicismo goela abaixo. Acabaram com a cultura nativa do país. os guaranis tão por ai pedindo esmola e tomando cola da polícia.

_ Calma ai Joca,_ fala o Professor, _ até concordo contigo, mais meu irmão acabaram com tudo, já tinha muito pouco e ficou sem nada. Tomaram os prédios e deram outras funções. Inventaram umas tais de Aulas Régias para tapar buraco, e mais nada, pouca escola foi fundada, quem era rico contratava um preceptor, mandava o filho estudar na Europa, o povão ó, ficou na mão. Lambendo pedra de sabão.

_ E o povo não se revoltou, vendo os colégios fecharem, perguntou alguém que o Professor nem viu quem foi.

_ Fizeram até um churrasco para comemorar, eles tavam tudo p. da vida com os Jesuítas, pois eles queriam transformar os índios em escravo e os padres não deixavam. Importar mão de obra da África era muito caro, Só os fazendeiros ricos do nordeste tinham dinheiro para isso. Aqui em São Paulo catava-se a indiada mesmo. Botavam fogo nos velhos, e o resto com medo virava escravo. Coisa de filme de terror velho.

_ Fazendeiros ricos do nordeste, nordeste não é tudo pobre. _ Pergunta Tonho com certa indignação de quem teve que fugir da terrinha para sobreviver.

_ É meu, naquela época a grana tava por lá, por conta da Cana-de-açúcar, aqui por baixo só tinha macaco, e mato, demorou para alguém achar ouro, ainda sim deu a maior confusão e os portugueses ficaram com a maior parte. Quem tocava as roças eram os índios e a caboclada. Fora que não tinha professor que não fosse padre, o que o Rei de Portugal não queria ver ensinando. Surgiram os tais de professores leigos, gente sem formação nenhuma, que mais faziam era a repetição do pouco que aprendiam, ensinavam os filhos dos capatazes e de pequenos comerciantes, com pouco verbo e muita pancada. Isso perdurou até a Republica meus caros amigos, e tem gente que defende a monarquia. _ Respira fundo.

_ Mudou um pouco só na vinda da família Real para o Brasil, de mala e cuia, fugindo da guerra na Europa. Só que ai veio a terceira ferradura na testa da educação no Brasil.

_ Ei não ta fazendo duzentos anos da vinda ou coisa assim. Vi um troço desta na televisão. Ó, já vô dizendo só assisto ao jornal, para saber das últimas notícias que interessam a burguesia. Não vejo novela que é coisa de alienado. _Vai Joca se justificando.

_ Pois é, _ fala Professor com o ar de quem sabe tudo, justificando o apelido _ o príncipe Regente a mãe louca, a Rainha, e um mundaréu de gente que foi se aboletando pelas casas e lugares do rio de Janeiro. Sob a proteção dos ingleses e a troco de muito ouro faz do Brasil a capital do Império. Então um monte de coisa que era proibido para a Colônia passa a ser uma necessidade. Afinal onde estudariam os filhos da nobreza, onde se formariam os médicos para curar os seus carrapatos, e os engenheiros para construir as fortalezas, afinal os franceses também tinham navios e podiam vim procurá-los. pois bem se fundam as primeiras faculdades, o Brasil cria por decreto o ensino superior sem ter escolas fundamentais. _ Toma mais um gole de cerveja, enxuga a boca coma gola da camisa e continua

_ Em outras palavras tinha faculdade para uma meia dúzia, e não tinha escola para a petizada. é claro que quem tinha grana dava um jeito na coisa. E não melhorou com a independência. Deu uma clareada na Republica, mas aí foi um tal de construir escolas, mas sem nenhuma condição de sobreviver, e sem professores, não havia a formação de professores. Sabia ler e escrever e fazer as quatro contas punham para dar aula. Vai vê que é por isso que professor é tão desprezado no nosso país. Tenho um amigo japonês que falou que no país dele professor era uma espécie de autoridade que todos chamam de sensei, tipo grande mestre. Só chamava de sensei o meu professor de judô, senão lá vinha porada. Cara apanhei feito um doido e não aprendi nada naquela época.

_ Me bateram um bocado na escola também,_ fala o Aristeu taxista, até então só ouvindo _ A gente era meio burrinho e a professora não tinha a menor dó. Diziam que era proibido bater na gente, mas vai contar em casa, o couro comia de novo. Levar bilhete para casa das professora era carregar a sentença de morte. Teve até um meio atrapalhadinho coitado, que quase pois fogo na escola para destruir um bilhete deste. ele achou que queimando o bilhete não pegava castigo. E o fogo pegou na sala de auto, um barracão de madeira.

_ Pois é estes barracões de madeira que eram as escolas da Republica. _ Emenda o Professor com medo de desviarem do assunto, afinal tinha lido a apostila do curso de pedagogia do primo dele e tinha uma baita estória para contar. _ Até que teve um grupo de peitudo que fizeram um documento em pleno Estado Novo, pedindo uma melhoria no ensino brasileiro, baseado numa tal de Escola Nova, movimento de professores no estrangeiro que demorou mas chegou no Brasil. Atrasado como sempre. Imaginem vocês que em 1932 em plena ditadura Vargas, os caras assinam um documento pedindo uma melhoria no ensino brasileiro. pois não é que em vez de cadeia, começaram até umas mudanças, bem lentas é claro. mas já se falava em Escola Normal que ensinava os professores. mas continuava o abismo entre o ensino para ricos e pobres. Podre tinha que estudar para trabalhar na fábrica, até a quarta série tava mais que bom, rico ia pro colégio e alguns faziam até faculdade, era o tal de dualismo escolar, uma escola para pobre e outra para rico.

_ E não mudou muito não né. – Alguém grita do fundo do bar.

_ É, pior é que sim, ta ruim mas tá melhor, por encreça que parível. É de chorar de dó mesmo. Lá no tempo do Império ter faculdade era um titulo de nobreza, agora eu que comecei um e não terminei, sou uma espécie de elite. me chamam até de Professor. _

Professor termina sua fala num grande silêncio, os outros já acostumados com seu jeito já vão formando outras rodinhas. Aquela noite ela não fala mais nada.

Falam da novela, do último fracasso do Coríntias, do pai que jogou a filha da janela do prédio, aliás advogado formado, nada nobre da parte dele. coisas da elite brasileira.

Professor já totalmente embriagado chora lágrimas de solidão e esperança. Faltou falar os anos podres da ditadura onde quase morreu a esperança. De atos heróicos na educação perpetrados por Paulo Freire e seus seguidores. No retorno da democracia, na nova Constituição de 1988 e da LDB – Lei de Diretrizes e Bases em 1996 fruto do esforço dos corajosos de 1932.

Professor com os olhos de vidro, no fundo tem esperança de dias melhores, sabe bem que as coisas mudam lentas mais mudam. Afinal um dia as coisas mudam; mesmo as coisas feitas, a ziquiziras mais bravas: um dia se desmancham. Os Santos olharão pela educação no Brasil. O Tempo é testemunha de tudo. E quem sabe um dia ele termina a faculdade que começou, faça parte desta mudança. Carregue com orgulho, agora não o apelido, mas o título de professor, e as pessoas o tratem, o velho bêbado, com deferência pelas ruas, como todo Professor deve ser tratado.

sábado, 17 de julho de 2010

dragão


S. Jorge (Franceschini, 1718)



Edson Bueno de Camargo

e toda profecia
que lhe saía das mãos
era uma sentença torta
epístolas postas na mesa
sem direito e direção

era festa na aldeia
ou se assemelhava
algo que voava
entre fitas lilases
e milagres de vinho e pão

e todo vento
que me chegava
era embriagado
estopa embebida em vinagre
deuses bentos em oração

e sob luz de candeias e voltas
toda a reza tinha um certo destino
olhares de menina triste
rosas verdes no parapeito
e medo de assombração

naquela noite não dormi direito
São Jorge não era meu amigo ainda
olhava-me firme junto à janela
com o cavalo empinando
e debaixo mais condescendente
com todos os seus dentes
ria de mim o dragão

terça-feira, 13 de julho de 2010

parafraseando Drummond:



Edson Bueno de Camargo

quando eu nasci
veio um saci
era para ser um anjo
que caiu de bebida na esquina
além de que seria plágio poético
(Carlos Drummond de Andrade teve a idéia primeiro)

o saci usava um velho jeans
e um all star surrado
(cadarço branco de velho punk)
não falava coisa com coisa
devia estar emaconhado brisado
sei lá
até ai
a vida não faz o menor sentido mesmo

vai edson
vai ser poeta na vida
maldisse o saci

fui peão de fábrica
tesoureiro
chefe de repartição
sindicalista
larguei a faculdade

mas fui pelas ruas
a fazer versos tortos
(imitando o Roberto Piva
que era um poeta melhor)

ah! como se pode perder o bonde da vida
se não existem mais bondes
só resta o conhaque no bar da esquina
e olhar o umbigo das moças que passam

olhar para a lua
pensando

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Contrato.




Edson Bueno de Camargo


quando me deram de comer
compraram com isso minh’alma
colocaram no fundo do prato
um contrato sem que me apercebesse

e quanto mais me fartasse
quanto maior a abundante mesa
mais partes de mim se levavam

não me sinto mais eu mesmo
há um vazio que me preenche por dentro
não há tormento,
nem angustia

só um vazio que me permeia a pele
como se esta fosse invisível
como se não fosse mais possível.



Poema publicado no livro "Poemas Do Século Passado-1982-2000", edição de autor, Mauá, SP - 2002  e  Livro da Tribo (Agenda Poética) 2004-2005 – Editora da Tribo – São Paulo-SP.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Apartheid em Mauá - SP - Brasil




Limitação de acesso à espaço público ao Fórum da cidade de Mauá-SP-Brasil.
Segregação á pessoas que não possuem graduação em Direito.

Constituição Federal de 1988, Título II, dos "Direitos e Garantias Fundamentais", o artigo 5 diz o seguinte: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" . E no inciso XV do artigo: "é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens"

domingo, 4 de julho de 2010

Antropofagia

e se parar pra pensar
pensar que nada!
dizer é questão de sentir
vida passa
é ritmia
pandemia
do ir e vir
e eu que queria
ficar estático
e observar
este devir
dogmático
antropofágico
que devora meu sentir

para muito além
o artista-poeta
com suor lapida vida
para não se mentir

Ederson Rocha

quinta-feira, 1 de julho de 2010

esquizofrenia



O GRITO -(Edvard Munch)

Edson Bueno de Camargo


dou passos ao acaso
e como diz o poeta Antonio Machado
a estrada se cria sob meus pés

sempre quis ser um artista plástico
o poeta entrou em minha vida de contrabando
junto o músico que menosprezei

o poeta é o mais persistente
dos sintomas
de minha esquizofrenia