“Esta sarna de escrever, quando pega aos cinqüenta anos, não despega mais.Na mocidade é possível curar-se um homem dela;”
Machado de Assis
Escrivaninha
Escrever é a coisa que mais me agrada entre todas as coisas. E por inúmeras razões. Uma delas é pela disponibilidade – que não leiam ‘facilidade’, escrever dá um trabalho do cão! – Bem, digo disponibilidade, pois não é preciso de grandes instrumentos ou lugares apropriados para esse nobre intento, que para mim é de um deleite indescritível. Tampouco preciso de um horário certo para exercê-lo. Acontece às vezes, da inspiração vir agitar-me na hora de dormir. Acendo a luz, debruço-me na cama mesmo e escrevo. Ou, então, se há perto algum aparelhinho mais moderno, digito ou gravo algumas idéias. Escrevo comodamente na sala, na cozinha ou em qualquer espaço da casa. Escrevo caminhando pela rua, no ônibus, no metrô e no carro, quando calam a boca (se não calam, escrevo mesmo assim). E nem preciso de um silêncio sepulcral, esboço meus escritos entre algazarras e música alta, tamanha minha vontade. Tanto na santa sobriedade, quanto depois de umas doses de vinho e garrafas de cerveja; na ressaca matutina de domingo ou segunda-feira enquanto espero o elevador.
Quando tenho centenas de ocupações, se há cinco minutos para respirar, lá estou escrevendo. Se estou triste, se estou alegre: escrevo. Se estou com raiva – aí é que eu escrevo! Não que o mundo literário seja um mero divã, tenho todo amor pelas letras, pelas construções, e recursos infindáveis dessa língua tão bela que é a nossa. Mas todo impulso, ainda que piegas, é um impulso. Até doente eu escrevo. Não há resfriado que me derrube de cama por vários dias que me impeça de escrever. Uma vez que eu possa mover as mãos...e, fosse o caso escreveria com os pés.
Quem sabe, a razão disso seja porque não é preciso grande disposição e esforço físico para fazê-lo. Fato que, aliás, não me deixa aceitar que a dança, como arte, seja classificada antes da literatura. Que a dança é uma arte sem tamanho, responsável por caracterizar a cultura dos povos é justo. Mas ouso dizer, ainda assim, que a literatura deveria vir antes. Em seu devido lugar, logo depois da música – primeira arte sem qualquer objeção da minha parte, pois o próprio som, cadência, graciosidade e valor das palavras descendem dela. Mas quanto às tintas, esculturas e os holofotes. O que são e o que mostram, se não poesia em outras dimensões? Literatura está em tudo, ou mesmo no nada. Pois se a apatia me aflige, e vem uma falta de assunto, escrevo sobre o tédio (vide Spleen, o mal do século) e este consolo nunca me faltará – o de escrever. A exemplo disso, o próprio Manuel Bandeira dizia que Rubem Braga era sempre bom escritor, mas “quando não tem assunto, então, é ótimo”
E se no fim de um dia sacal, de rotina estafante, no caminho de volta para casa, um ruído, um passante, uma flor silvestre ou um gato vadio atravessam meu caminho e daquilo brota algumas linhas em prosa ou um verso qualquer, bom ou ruim, que nem sei se ou publicar...olho para aquilo e por um instante esqueço as prostrações e o cansaço e ganho fôlego pra mais um dia. Isto me faz pensar que, se não posso mudar esse mundo todo errado, do jeito que quero e instantaneamente, ao menos posso dar aos meus escritos a forma, o tom, a cor e o tema que eu quiser. E alcançar, ao menos assim, o ideal eleito. Pois esses traços no papel são o que mais me diz respeito, como uma parte de mim em eterna construção.
Lidiane Santana