sexta-feira, 26 de junho de 2009
por culpa dos sapateiros...
Olhando para as fitas que prendiam os sapatos podia pensar que sua vida era medida por eles. O tempo dos sapatos de verniz, o tempo dos tênis de lona. O tempo dos coturnos e dos saltos Luis XV. O tempo que se dobrava em sapatilhas, sandálias rasteiras de couro vindas do nordeste. Sua vida poderia ser contada por seus pés, como se estes vivessem a parte do resto do corpo, ignorando todo o resto.
Tempo inclusive de chegar em casa descalça, pisando de leve nas meias atoalhadas para não fazer barulho.
Não são os pés o foco, mas o que os recobre. Como revestir esses pés e como mostrar para quem olha quem se é? Um sapato diz mais do que todo o resto da roupa.
Tempo de sapatinhos tricotados. Pantufas coloridas. Centenas de All Stars se acumulando - maldição de sapato que dura pouco e se gosta tanto. Botas de inverno. Reconstruções históricas. Pelúcia, couro, napa, algodão, lantejoulas. Solado de corda, borracha, plástico.
Olhou os pés. Descalços, sem espelho ou mostruário. De quem eram aqueles pés depois de tantos sapatos?
quarta-feira, 24 de junho de 2009
É Chato ser Chato por não Tirar os Sapatos
terça-feira, 23 de junho de 2009
NasentrelinhasdeMarceloAriel
na biblioteca imaginária
o diálogo do outro
tensão & palavra fogo
soul de domingo
onde o ser é incendiado
silêncio
na lama cinza
cantado no mangue
estrangeiro de minhas veias
–bebe palavras–
& o fogo se desdobra
poesia na nudez blues
10demaiode2009, noite.
José Geraldo Neres.
segunda-feira, 22 de junho de 2009
pele de calcanhar (sapatos famosos ausentes)
Edson Bueno de Camargo
quando criança no Cariri
amiga minha
tinha os pés no chão e no pó
o sol arrepiado no quengo
criança só se podia nas horas que sobravam
dia a dia
dedos solitários
e solidários às pedras
e seus carinhos
sertão de duros espinhos
uns na carne
outros na alma
(uns nunca se esquecem)
da cacimba a casa
pote sobre a cabeça
olhos em contrição ao céu
chuva não
ter uma sola sob os pés
que não fosse dura pele de calcanhar
(chinelas bem guardadas em casa)
só em dias de feira e igreja
nas raras festas em que se celebre
não se sabe o que de alegria
(deus de olho em tudo
sem fazer nada)
um par de sandálias de tira
(destas baratinhas
de borracha sintética)
com status de calçado de luxo
lavado até o fim do branco da palmilha
a linha funda do destino
cortava a epiderme e solado
(endurecia o couro e o espírito)
até às primeiras letras foi uma luta
rebeldia e silêncio da morte
para quem come pouco
nada é tão perto
demorou muito sapato
quinta-feira, 18 de junho de 2009
Cindy, ói ela!

a título de provocação
Quem quiser contribuir para a série "sapatos famosos", à vontade.
Quem quiser convocar novos sapateiros, à vontade também. Já temos uma idosa, um obeso, um palhaço e um uspiano. Continuemos prestigiando as minorias discriminadas.
Sapatos de Auschwitz (da série "sapatos famosos", #2)

“Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie”
Adorno - 1949
escrever poema
após Auschwitz
é barbárie
mas fazer filme
sobre Auschwitz
quase garante um oscar
enquanto isso
os sapatos
esperam
não sozinhos!
ao lado deles:
sapatos de Tuol Sleng
sapatos de Kosovo
sapatos de Ruanda
pés esquecidos sob o sol do Darfur...
(acredita que se deve relevar seus poemas, pois, quando nasceu, o mundo já não fazia sentido)
terça-feira, 16 de junho de 2009
pedra
esconde a face
dos exilados
objetos em pedra
pedra-pão de duro comer
dente de cerâmica preta
e corte de obsidianas
pedra-pé
e suas plantas voltadas
faces à terra seca
ranhuras de rocha viva
famílias de pedra
nomes minerais
vermelhas
leprosários remotos
para exilar todo aquele de cepa rara
os que não coagulam
os que não coadunam
falam em língua de fogo
(como profetas)
e ferroadas de zangões
ao abandono
da palavra esfacelada
mica de pedra
sal
que se perde em graus
e os gumes de cobre
ainda seca a boca
a sílica do amargo da terra
blanco
aqui está o cálculo calcinado de enxofre
fogo PROMETido
que queima lento e doloroso
sexta-feira, 12 de junho de 2009
O mistério da linguagem
Preguiçosamente, começo a ler um livro. Contribuo com alguns pensamentos, julgo entender o que está escrito porque conheço a língua e as coisas indicadas pelas palavras, assim como sei identificar as experiências ali relatadas. Escritor e leitor possuem o mesmo repertório disponível de palavras, coisas, fatos, experiências, depositados pela cultura instituída e sedimentados no mundo de ambos. De repente, porém, algumas palavras me "pegam". Insensivelmente, o escritor as desviou de seu sentido comum e costumeiro e elas me arrastam, como num turbilhão, para um sentido novo, que alcanço apenas graças a elas. O escritor me invade, passo a pensar de dentro dele e não apenas com ele, ele se pensa em mim ao falar em mim com palavras cujo sentido ele fez mudar; arrasta-me do instituído ao instituinte. Neste momento, uma aquisição foi feita, e o livro, doravante, pertence às significações disponíveis da cultura. Se eu também for escritora, uma tradição foi instituída e eu a recolherei para, ao retomá-la, reabrir a linguagem numa nova instituição.
Como a pintura, a literatura é retomada de uma tradição mais antiga do que ela, a do mundo perceptivo, e é abertura de uma nova tradição, a da obra como cultura. Assim como o pintor tateia entre linhas e cores para fazer surgir no visível um novo visível, assim também o escritor tateia entre sons e sinais para fazer surgir na linguagem uma nova linguagem. Essas operações instituem o mundo cultural como mundo histórico no qual o momento instituinte se enraíza no instituído, abrindo uma nova instituição, que se tornará, a seguir, instituída e uma tradição disponível para todos.
terça-feira, 2 de junho de 2009
Sola Fina
DA SÉRIE... SAPATOS FAMOSOS
#1
MISSÃO CUMPRIDA!
Muntazer al-Zaidi
haveria quem tivesse dó
haveria quem clamasse sangue
haveria quem se indignasse frente à infâmia
- patriotismos puídos surgindo do pó
na História também se entra errando
e errando nós o revelamos qual truão
o polichinelo sorrindo amarelo
- triste títere de um humor doente
erramos! mas que fazer?
fosse barata, nós acertaríamos!
sendo uma Mentira, não...
SAPATO DE RETALHOS

“A poesia por seu porte anárquico e sua imaterialidade traz a semente do caos. O caos é o mais primitivo dos deuses, criador e destruidor, temido pelos gregos clássicos, por imergir das águas barrentas e férteis em vida, por conter uma grande energia e potencial. A partir do caos se criaram universos.” Edson Bueno de Camargo
“A poesia é, ao meu ver, o mais alto nível que a razão chegou. Na poesia a razão não explica o sentimento, mas demonstra-o. E isto é fundamental.” Chris Clown
“Na obra de arte, põe-se em obra a verdade do ente. «Pôr» significa aqui erigir. Um ente, um par de sapatos de camponês, acede na obra ao estar na clareira do seu ser. O ser do ente acede à permanência do seu brilho.
A essência da arte seria então o por-se-em-obra da verdade do ente (das Sich-ins-Werk-Setzen der Wahrheit des Seienden). Até aqui, a arte tinha a ver com o Belo e a Beleza, e não com a verdade.
As artes que produzem obras deste gênero, por oposição às artes de manufatura que fabricam apetrechos, são chamadas belas artes. Nas belas artes não é a arte que é bela, chama-se assim porque produzem o belo. A verdade, pelo contrário, pertence à lógica. A beleza está reservada à estética.” Heidegger
"A diferença entre o Crítico de Arte e o Artista é da mesma natureza que distingue o Jogador de Futebol e o Comentarista Esportivo." Jorge de Barros
Saudações, Alício! Irmão de um palhaço de botas e ilustre sapateiro de sapatos! Seja bem vindo!
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Heidegger, Martin. A Origem da Obra de Arte. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Edições 70. Lisboa, 1977, pp. 14-30.

Estas indicações adequadas apenas explicam o que já sabemos. O ser-apetrecho do apetrecho repousa na sua serventia. Mas o que se passa com esta? Apreendemos já porventura o caráter instrumental do apetrecho? Para o conseguirmos, não temos de procurar o apetrecho que tem serventia no seu serviço? A camponesa no campo traz os sapatos. Só aqui eles são o que são. E tanto mais autenticamente o são, quanto a camponesa durante a lida pensa neles, ou olha para eles ou até mesmo os sente. Ela está de pé e anda com eles. Eis como os sapatos servem realmente. Neste processo de uso do apetrecho, o caráter instrumental de apetrecho deve realmente vir ao nosso encontro.
Enquanto, pelo contrário, tivermos presente um par de sapatos apenas em geral, ou olharmos no quadro os sapatos vazios e não usados que estão meramente aí, jamais apreenderemos o que é, na verdade, o caráter instrumental do apetrecho. A partir da pintura de Van Gogh não podemos sequer estabelecer onde se encontram estes sapatos. Em tomo deste par de sapatos de camponês, não há nada em que se integrem, a que possam pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização. Um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia...
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É a partir desta abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo."